"Senhor das moscas": entre a civilização e a barbárie

 


Por Adelson Vidal Alves 

Os clássicos da literatura são capazes de oferecer leituras diversas de seu conteúdo, e apresentar lições e reflexões para as  variadas questões da vida em sociedade. "Senhor das Moscas", de William Golding, é uma destas grandes obras literárias, perfeita para se abrir uma grande discussão sobre a natureza humana e as relações de afeto e poder que se estabelecem entre os seres humanos diante das adversidades.

O livro conta a história de um grupo de garotos que sobrevive a queda de um avião em uma ilha remota, provavelmente durante a Segunda guerra mundial. Sem um adulto para orientá-los, eles precisam buscar uma forma de se manterem vivos e serem resgatados. Ralph, personagem principal, é eleito para ser o líder dos meninos, e estabelece regras de convívio e estratégias de sobrevivência. Uma concha determina quem pode ou não falar nas inúmeras reuniões que fazem. Ralph acredita que estabelecendo critérios para as decisões seria possível conservar a ordem, importante para a salvação de todos. 

Eram eles garotos, crianças e adolescentes, em quem apostamos a ingenuidade da nossa espécie. Mas "Senhor das Moscas" mostra que a perversidade e a selvageria do homo sapiens podem se apresentar mesmo entre aqueles que consideramos o símbolo da inocência. Cercados por perigos e escassez, o desejo por ordem e cooperação logo se volta para o caos, o tribalismo e a violência. Os jovens britânicos civilizados retrocedem ao estado de natureza violento, desautorizando a tese rousseauniana do bom selvagem. 

Jack, outra figura importante da trama, rompe a unidade do grupo e forma uma tribo rival. São agora dois grupos, um liderado por Ralph e outro por Jack. Há diferenças entre eles. O primeiro aposta no resgate através de um pedido de socorro feito por fumaça, que viria de uma fogueira acesa 24h por dia. Mas tal empreitada exige colaboração, divisão social do trabalho, um recurso fundamental para o sucesso da organização produtiva de uma sociedade (Salve Adam Smith !). Ralph vai liderar os coletores, que comem e vivem basicamente de frutas. 

O inimigo de Ralph ignora a estratégia civilizada do outro grupo, e quer mesmo um bando de caçadores guerreiros que se alimentam de porcos, mortos debaixo de um ritual macabro típico dos bárbaros. A dança e os rostos pintados completam a estética primitiva do grupo de Jack, que pensa em acumular poder a todo custo, sem qualquer tipo de veto civilizatório. A destruição da concha simboliza o ingresso na anarquia, na supremacia da força sobre as regras, na vitória da ditadura sobre a democracia. 

William Golding nos leva para dentro de uma reflexão sobre quem é o ser humano. Desfaz ilusões quanto à nossa suposta bondade natural, e mostra que a civilização não é uma conquista nos dada naturalmente, mas fruto de um processo que precisa ser conservado, com o risco de retrocesso a bater constantemente em nossa porta. 

Em tempos onde o terrorismo ganha legitimidade ideológica, o expansionismo bárbaro da Rússia recupera a geopolítica do imperialismo  selvagem e a democracia ocidental é relativizada em nome de um igualitarismo utópico sem hierarquias civilizacionais, "Senhor das Moscas" nos mostra que a luta entre a civilização e a barbárie são parte permanente da nossa história.

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