O identitarismo está construindo uma nova história do Brasil

Por Adelson Vidal Alves 

Carl Friedrich Philipp von Martius publicou "Como se deve escrever a história do Brasil". Nasce aqui os primeiros esforços de se construir uma historiografia oficial brasileira. É no IHGB (Instituto Geográfico e Histórico Brasileiro) que se hospedará a produção institucional da nossa história, onde se destacará o nome de Francisco Adolfo de Varnhagen. 

Estrangeiros e descendentes de estrangeiros são os primeiros responsáveis por contar a realidade histórica do Brasil. Varnhagen concentra sua narrativa em torno do trono, a monarquia como elemento de unidade nacional. Também se pensava em um futuro branco para o país. No IHGB residiu, ainda, uma leitura romântica indianista, aos moldes rousseaunianos. 

Sabemos das deficiência técnicas da produção historiográfica de Francisco Adolfo de Varnhagen, que escreveu meio que por encomenda, a partir de suas convicções, sem apego ao rigor científico. Mesmo assim, veio dele o norte que influenciou o trabalho historiográfico do Brasil por décadas. 

As coisas começam a mudar em meados do século XX. A virada se dá com a perda de centralidade do poder político, redirecionando o protagonismo para os de baixo, que ganham a benevolência como essência. Inaugura-se uma polarização entre europeus essencialmente malvados, dominadores perversos, em oposição ao purismo indígena. Os negros africanos são vitimizados ao extremo e absolvidos de elementos selvagens da sua cultura nativa.

O identitarismo passa a dar as cartas na academia. O descobrimento do Brasil ganha aspas, já que aqui já estaria uma população autóctone. Desconsidera-se que os índios são tão imigrantes quanto os europeus. Eram asiáticos que chegaram aqui há milhares de anos. O encontro entre europeus e os nativos teria se dado a partir de uma sede genocida consciente do colonizador, capaz de empregar uma guerra biológica em tempos onde ninguém conhecia vírus e bactérias. O mito do genocídio indígena está plantado. 

São abundantes as fontes que demonstram o quanto é absurdo o discurso da pureza moral indígena. Tupinambás escravizaram, e muitas mães indígenas amamentavam seus filhos com o sangue do inimigo, a fim de dar o sabor da guerra ao pequenino, para que ele aprenda deste cedo o prazer da violência. Pesquisadores como Napoleon Chagnon pesquisaram os Ianomâmis, e não encontraram, como defende a maior parte dos antropólogos, um povo que só luta por terra. O bom selvagem deixa de existir quando a guerra também se dá por sexo, pela posse das mulheres. Mas na história construída por identitários o índio é tão somente a vítima virtuosa. 

A escravidão é uma das maiores vergonhas da nossa história. Quase 5 milhões de africanos foram capturados em suas terras e para cá trazidos como coisas, violentamente lançados na penúria do cativeiro. Mas o processo que sustentou essa perversidade não tem apenas o europeu como ator exclusivo. Escravizar gente era prática comum na  África. "Era constante na maioria das sociedades africanas a demanda por escravos", escreveu o renomado africanista Alberto da Costa e Silva, morto recentemente. 

A cultura escravagista do continente negro foi transferida para o nosso solo, a ponto de estar presente no principal símbolo da resistência negra ao cativeiro. O Quilombo dos Palmares não foi, como sustenta a romantizada narrativa identitária, uma república igualitária e anti-escravidão. Entre os palmarinos haviam escravos. Nas palavras de José Murilo de Carvalho:  "No próprio quilombo dos Palmares havia escravos". O autor de "Cidadania no Brasil: o longo caminho", prossegue: "O aspecto mais contundente da difusão da propriedade escrava revela-se no fato de que muitos libertos possuíam escravos. Na Bahia, em Minas Gerais e em outras províncias, dava-se até mesmo o fenômeno extraordinário de escravos possuírem escravos". 

Certamente é paradoxal, mas, sim, negros escravizavam negros. Mais que isso, poderiam construir fortunas, como no caso das sinhás pretas da Bahia, estudadas pelo antropólogo Antônio Riserio. 

As rebeliões escravas, obviamente, incomodavam o status escravocrata, mas não se davam, em sua maioria, por um sentimento libertador, no sentido de que a libertação se daria primeiramente para si, não para todo o conjunto das vítimas. Negros assim que libertos procuravam negros para escravos. Na revolta dos malês, havia a pretensão de escravização de mulatos. Não havia um questionamento ao ato de escravizar. 

A historiografia identitária ignora tudo isso. Vale mais a narrativa que demoniza os  europeus e santifica negros e indígenas. Os bandeirantes deixam a categoria de heróis desbravadores e assumem o papel de perversos escravocratas. Nos livros escolares mal se percebe que o Brasil também recebeu influência europeia em sua formação. Há uma lei que obriga o ensino da história indígena e africana, mas que não determina que nossas crianças também conheçam a história de Portugal, que para o bem ou para o mal, ajudou na formação de nosso país. 

A versão identitarista da nova historiografia brasileira se pretende redentora. Não cumpre o papel de revelar e problematizar os fatos, mas tão somente educar para uma consciência revanchista, capaz de mobilizar politicas de reparação. Não foi à toa que recentemente uma proposta do MEC visava abolir do currículo escolar do Ensino médio eventos históricos envolvendo a Europa, como o Renascimento e o iluminismo. Estaríamos restritos ao mundo ameríndio e africano. 

As escolas foram invadidas por uma tal educação antirracista, por paranoias decoloniais e surtos wokes. Os professores transmitem a necessidade de penitência perpétua dos brancos, assim como a necessidade de um esforço reparativo às "vítimas afrodiaspóricas" da escravidão.

Só se ensina e se demoniza o colonialismo europeu. Não se fala no Império Zulu, na escravização de cristãos brancos por muçulmanos, no tráfico atlântico promovido por árabes bem antes da chegada europeia à África e muito menos é abordado a participação africana na escravidão negra. A nova historiografia tem a missão de criar moços e bandidos, e assim desconfigurar a mentalidade nacional, que se desintegra para dentro de uma percepção tribal da realidade.

Comentários

  1. Não é bem assim. A pessoa que escreveu esse texto pega os posicionamentos mais extremos de alguns e trata como um posicionamento dominante. Não é.
    Educação anti racista e a lei 10.639 não exigem posição contra o europeu, mas que se entenda tb a riqueza da história da África e as possibilidades de protagonismo negro num país em que eles são metade da população. Não é que o bandeirante seja malvado, ele apenas não é herói. É personagem de um tempo e de uma visão de mundo pré iluminismo. Um bom projeto educacional é capaz de apresentar as sinhás negras de Risiderio (excelente livro) e quem trabalha com educação, sabe a dificuldade que é achar um bom livro de história Africana... nesse sentido, um esforço pra que a lei seja cumprida e entendida é essencial.
    Críticas são válidas, mas o texto aí quer jogar o bebê com a água suja.

    Carlos

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