Os brancos cristãos escravizados por muçulmanos que a historiografia esqueceu


Por Adelson Vidal Alves 

"Impressiona como não temos a mais vaga ideia de toda a magnitude do tráfico de escravos brancos europeus; e o pior é que que isso estava acontecendo ao mesmo tempo em que ocorria o comércio de escravos africanos, para o qual foram direcionados muito mais estudos sérios", escreveu Robert C. Davis em "Escravos cristãos, senhores muçulmanos: Escravidão branca no mediterrâneo, na Costa da Berbéria e na Itália, de 1500 a 1800". O livro é um raro esforço de demonstração da relevância história da escravidão branca, ignorada por grande parte dos historiadores.

A escravidão, sabemos, é parte integrante da história da humanidade. Ela aconteceu na Antiguidade greco-romana, no Egito antigo, nos impérios pré-colombianos da América, na África negra e nas colônias europeias. Escravizar humanos é sempre bárbaro, e a crueldade do cativeiro atingiu todos os povos do planeta. 

Mas estranha como a energia da historiografia contemporânea se concentre quase que exclusivamente na escravidão de negros por brancos. Apesar dos árabes terem chegado ao tráfico atlântico bem antes dos europeus entrarem na África, e da Inglaterra ter abolido a escravidão enquanto ela ainda prevalecia entre os africanos, foi o europeu branco o condenado a eterna penitência pelo crime de escravização. 

Entre os séculos XV e XVIII, cristãos brancos viveram sob o pavor de serem atacados por africanos muçulmanos, seja por terra ou pelo mar. Capturados, eram acorrentados e escravizados até a morte no Marrocos, em Argel e Tunís. Haviam motivos econômicos para tamanha barbárie, só que não se resumia a isso. Os seguidores da religião de Maomé sentiam prazer na vingança pelas cruzadas cristãs. Era como uma Jihad, a Guerra Santa de Alá contra os hereges.

Davis e outros pesquisadores tem em mãos dados que mostram os números da escravidão branca num patamar relativamente próximo da escravidão negra. Ao contrário do que dizem muitos, o cativeiro branco cristão não era assim tão irrelevante frente ao negro, nem era menos brutal. É verdade que Estados cristãos também iam atrás de muçulmanos para escravizar, mas destaca-se o fato de que a cidade de Argel, no Império Otomano, tenha enriquecido através de ataques piratas contra islandeses, ingleses e franceses. 

A escravidão negra é estudada com abundância, e tais estudos tem trazido novidades um tanto incômodas para ativistas negristas que vestem trajes acadêmicos dentro das nossas universidades. Na América portuguesa, é bem documentado o número de escravos que ficaram ricos com seus escravos, que a relação sexual entre negras e senhores não se resumiu à violência, também o trabalho na economia colonial era bem mais complexo do que se imaginava, com os próprios escravos sendo diferenciados, de acordo com a função que ocupavam. Inferno de verdade era a vida dos escravos de eito. Para quem quer adotar uma narrativa puramente vitimista, tais informações atrapalham, assim como atrapalha as evidências da importância histórica da escravidão branca. 

Para desqualificar os que clamam por mais atenção aos estudos da escravização de brancos cristãos por africanos muçulmanos, fala-se até mesmo de escravidão branda. Muitos podem concordar com Philemon de La Motte, para quem os escravos em Argel "não são tão infelizes assim", ou Laugier de Tassy que alegou que nenhum escravo branco "sofreu aquelas agruras tenebrosas nos quais monges e outras pessoas astutas (...) fizeram o mundo acreditar". Há quem alegue que os brancos capturados eram no máximo prisioneiros de guerra, sequer chegando a ser caracterizados como escravos. 

Toda a escravidão é perversa, pois desumaniza, nega o maior bem da vida: a liberdade. No entanto, algumas formas de escravidão ganham mais atenção que outras. A carga terrível do cativeiro negro vem rendendo discursos de reparação e influenciando nas políticas públicas, e os estudos a respeito ganham altos financiamentos públicos e privados. Não é apenas seleção acadêmica de objetos de estudo, há preferência ideológica. O tema da escravidão branca fica longe das universidades e dos livros didáticos. A depender destes, a história da escravidão é a história de brancos cristãos malvados escravizando negros oprimidos. Quando a verdade é que veio do Ocidente branco a filosofia das luzes que tratou a liberdade como um bem universal, em tempos onde muita gente a relativizava. Aliás, até hoje relativizam. 

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