A "Rússia oriental" que quer destruir o Ocidente

Por Adelson Vidal Alves 

Robert Kagan foi um dos que alertaram para o renascer da Rússia, quando o mundo achava que ela era carta fora do baralho. A leitura do seu livro "O retorno da história" nos leva para dentro de uma dimensão profética. De fato, a humilhação da desintegração da URSS hoje  está convertida em um sentimento de revanchismo imperialista. Vladimir Putin, o autocrata que dirige a nação euro-asiática, já disse que o fim da União Soviética foi "a maior catástrofe geopolítica do século XX" e cada vez mais demonstra intenções restauracionistas baseadas em sua concepção neoczarista de poder. Ele quer uma Rússia grande de novo, pelo uso das armas, com intensa chantagem nuclear. 

A Rússia nasceu na região de Kiev (hoje Ucrânia), no final do primeiro milênio. Mas o Estado russo foi invadido e ocupado pelos mongóis de forma devastadora, em uma ocupação que durou cerca de 250 anos. Para muitos analistas começa aqui a identificação russa com a cultura asiática, trazendo aspectos profundamente negativos. Para Francis Fukuyama: "(...) a invasão mongol exerceu sobre o desenvolvimento político russo subsequente uma influência considerável quase toda negativa. Em primeiro lugar, isolou a Rússia do comércio e do contato intelectual com Bizâncio (...) Também impediu o contato com a Europa, o que significou que a Rússia não participou de acontecimentos como o Renascimento e a Reforma no mesmo grau que as terras mais a Oeste". Por fim "Os mongóis debilitaram todas as tradições jurídicas herdadas de Bizâncio".

Para o historiador Daniel Aarão Reis, especialista em URSS, o Império russo incorporou características políticas da Ásia "da China em particular - importou referências para a estruturação do poder político - a Autocracia". A Rússia se tornou um enorme império territorial, mas manchado pelo atraso político, econômico e social.

O debate em torno dos destinos da civilização russa aconteceu dentro do país, basicamente entre os chamados "eslavófilos" e os ocidentalizantes. Petr Yakovlevich Chaadayev, ou Peter Chadaev, escreveu em francês as oito "Cartas filosóficas", que causaram barulho no meio da inteligência russa do início do século XIX. Nestes manuscritos havia uma crítica ácida ao passado russo e a fé ortodoxa, vistos como pontos de atraso frente aos elementos avançados da cultura europeia. Antes de Chaadaev, Pedro, o Grande, já tentara inserir a Rússia no mundo moderno, a partir de influências ocidentais. Contra tais ideias e movimentos modernizadores surgiram os eslavófilos.

Os eslavófilos se opunham aos ocidentalizantes russos. Estes últimos pensaram a história a partir da ótica do progresso e da laicidade. Os primeiros queriam uma Rússia simples, ancorada no imaginário das comunidades. O eslavofilismo, que tinha nomes como Aleksei Khomiakov, preferia o ideal comunitarista de beleza e simplicidade, preso a um certo conservadorismo religioso. Os adeptos do ocidentalismo se apegaram ao modelo evolucionista que sustentaria a inevitabilidade da evolução russa, onde a servidão e o arcaico czarismo seriam derrotados. 

As revoluções russas do século XX empurraram a Rússia para frente. Na economia e no terreno militar se tornou uma potência, principalmente a partir da criação da URSS. Na política preservou-se as mesmas estruturas de pode czarista, como bem analisou o historiador Richard Pipes. A autocracia permeceu como regra, sem espaço para o avanço de ideias sobre democracia e liberdade. Calcula-se 100 milhões de mortes causadas pela ideologia do "comunismo histórico". As contradições de um sistema militar e econômico fortes e politicamente tirano deram fim à União Soviética em 1991.

O Ocidente tinha agora a oportunidade de trazer a Rússia para a esfera de influência europeia. Como sugeriu o sociólogo Demétrio Magnoli, faltou um Plano Marshall para a Rússia. A OTAN, aliança militar do Ocidente, preferiu expandir sua influência no Leste Europeu. Foi um erro. 

A Rússia de Putin é hoje uma economia de média relevância, mas com armas nucleares e um numeroso e poderoso exército. Na cabeça do ditador russo prevalece a ideia de uma cruzada civilizacional contra o Ocidente, onde a invasão à Ucrânia é sua maior expressão. A Rússia de hoje tem os traços do despotismo oriental, não acolhendo os direitos humanos universais defendidos pelo Ocidente, e rejeitando a democracia liberal. A tradição, o nacionalismo e a religião são valores russos contra o progresso, o individualismo e a laicidade defendidas pelo Ocidente. A Rússia Oriental de Putin se alinha à China e ao Irã em uma aliança autocrática contra a democracia do Ocidente. Eis o que está em jogo na Ucrânia.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os brancos cristãos escravizados por muçulmanos que a historiografia esqueceu

O identitarismo está construindo uma nova história do Brasil

VILA AMERICANA: POR QUE VOTO NA CHAPA 2