A esquerda entre o universalismo iluminista e o tribalismo woke



Por Adelson Vidal Alves 

Em "Comunidades imaginadas", Benedict Anderson defende que o sentimento nacional é pura invenção. Fora de pequenos vilarejos, as pessoas se conhecem e se conectam por valores e personagens imaginários que os ligam, como a língua, os mitos e heróis. 

A direita conservadora sempre valorizou as lealdades nacionais; o compromisso com sua terra e seu lar. Nas formas mais radicais apareceu em seu meio a xenofobia e o racismo. A esquerda era diferente, velando pela herança universalista do iluminismo. O marxismo chamava por solidariedade internacional, compreendendo que a aliança com os explorados do mundo não pode ter pátria. Tudo isso está mudando. 

Acaba de chegar ao Brasil "A esquerda não é woke", de Susan Neiman. O livro enfrenta a questão da relação entre o wokismo e o patrimônio político da esquerda. Neiman lembra que as pautas do identitarismo estão ancoradas no sentimento histórico dos progressistas em defesa dos mais fracos. Tomar lado de negros, gays e das mulheres é coerente com a esquerda e seu alinhamento político junto aos de baixo. Porém, o que a patrulha woke produziu em nome destes grupos é bizarro e perigoso.

A história já foi contada exclusivamente pelos vitoriosos, que criaram seus heróis virtuosos. Hoje a virtude se encontra não no mérito e nas boas intenções, mas sim nas vítimas, essencializadas em sua forma. As minorias oprimidas passam a reivindicar suas identidades como passaporte para o sucesso. Raça e gênero determinam a ocupação de cargos no espaço público de poder. 

A esquerda não pode ser seduzida pela tentação fragmentária do movimento woke. Ao invés de se aprisionar no essencialismo reacionário, deve buscar raízes no universalismo iluminista, superando o espírito tribal que sustenta a luta identitária.

"Quem diz "humanidade" pretende enganar" escreveu Carl Schmitt, jurista e teórico do Terceiro Reich, para quem a política se resume na fórmula "amigos x inimigos". Michel Foucault, o anti-moderno que se apaixonou pela revolução iraniana, disse: "Nossa tarefa é nos emanciparmos do humanismo". O tribalismo identitario é fruto deste improvável casamento: o filósofo nazista com o guru principal do pensamento woke. Ambos acompanham Joseph-Marie de Maistre, o contrarrevolucionário ultramontanista, que refletiu: "Ora, não existem homens no mundo. Já vi, na minha vida, franceses, italianos, russos etc (...) Quanto ao homem, declaro nunca ter encontrado". Todos estes negam qualquer visão que pense a humanidade e o universal.

O identitarismo absorve interpretações reacionárias e conservadoras da história, que não obedeceria ao otimismo progressista dos velhos iluministas. Pelo contrário, à medida que a modernidade avança as coisas parecem piorar. O racismo, o sexismo, a homofobia e a misoginia estariam mais constantes do que nunca. Leis e atitudes que se contrapõem a tais preconceitos são ignoradas para que triunfe a versão pessimista woke, que nega categoricamente o progresso, evidente hoje nas democracias liberais, que se abriram ainda mais para a construção de espaços inclusivos.

Há quem diga, bebendo na fonte do relativismo cultural, que o apelo universal das luzes é apenas um disfarce para a imposição de valores próprios de uma civilização, neste caso, a ocidental. Também se cita nomes como David Hume, Kant e Voltaire (ligando-os a escravidão, racismo e machismo) a fim de desconstruir o papel do iluminismo. Seria tudo hipocrisia ocidental, lá no passado e agora. 

O tribalismo woke olha para dentro dos interesses particulares de grupos. A concepção de classe, própria do marxismo, ou de povo, desaparecem em meio aos fragmentos, perdendo a dimensão da totalidade humana. É a extrema-direita que agora toma posse do termo povo, e faz disso sua arma eleitoral. Nos EUA, analisa Mark Lilla, essa virada de visões de mundo deu a vitória a Trump, o racista que ganhou votos de negros e latinos para a presidência da República americana. Eis a contribuição do identitarismo para a democracia.

Mas a luta pela causa das minorias tem seus limites. Quando as mulheres são brancas e pertencentes ao "grupo do opressor", elas merecem o inferno. Prova disto vimos no 7 de Outubro, quando judias estupradas pelos terroristas do Hamas passaram esquecidas pela indignação das feministas. Talvez possa ser absolvido tambem o pantera negra   Eldridge Cleaver, que estuprava mulheres brancas como reparação histórica, ou até mesmo as gangues paquistanesas que violentaram alemãs. São mulheres, mas são do grupo errado, não merecem a piedade woke.

Enfim, o identitarismo é uma mistura de elementos do reacionarismo e do tribalismo, que historicamente reune aspectos da barbárie, alerta Susan. A esquerda, assim, não pode ser woke. A autora tem razão.

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