Civilização universal?

Por Adelson Vidal Alves 

"Eu não poderia ter me tornado um escritor no mundo muçulmano; na China; no Japão (...). Eu não poderia ter me tornado o tipo de escritor que sou na Europa Oriental, na União Soviética ou na África negra", escreveu o Prêmio Nobel de literatura V.S. Naipaul em seu famoso artigo "Nossa civilização universal". Nascido em Trinidad  e Tobago, ele entendeu que sua travessia civilizacional permitiu que sua literatura florescesse. No seu ensaio, ainda, defendeu que os valores ocidentais poderiam atingir todas as culturas e povos. 

Samuel Huntington, renomado analista político norte americano, morto em 2008, é autor do clássico "O choque de civilizações", onde defende que os novos conflitos mundiais se darão basicamente por agrupamentos civilizacionais, entre 5 ou 6. Ele entende que as civilizações, em níveis distintos, podem coexistir, mas não convergir. Huntington critica as pretensões universalistas do Ocidente, entendendo que fora do mundo ocidental há uma resistência aos ideais de uma civilização universal nascida a partir dos valores ocidentais. Escreve ele: "Nas outras civilizações, há minorias que abraçam e promovem esses valores [os valores ocidentais], porém as atitudes predominantes em relação a eles nas culturas não-ocidentais variam de um ceticismo generalizado a uma intensa oposição. O que é universalismo para o Ocidente é imperialismo para o resto". 

O cientista político Francis Fukuyama critica a visão de Huntington. Autor do controverso ensaio "O fim da história", onde celebrava o triunfo da democracia liberal e a economia de mercado como os vitoriosos em definitivo na corrida histórica, Fukuyama compreende que é possivel e provável a universalização das principais instituições do Ocidente, dentro de um processo modernizador. "A universalidade é igualmente possível em termos mais amplos, porque a força básica da história humana e da política mundial não é a pluralidade cultural, mas o progresso geral da modernização, cujas expressões institucionais são a democracia liberal e a economia orientada pelo mercado", escreveu. 

Nos nossos dias, a olho nu, fica difícil imaginar uma civilização universal que seja aberta por elementos da cultura ocidental. Isso porque o Ocidente vive uma crise de várias dimensões: política, demográfica, econômica, cultural e militar. Seu estilo de vida é abertamente atacado de fora, seja pelo fundamentalismo islâmico e o terror, seja pelas autocracias clássicas ou pelos regimes iliberais que crescem no mundo. Por dentro, o relativismo pós-moderno faz um apelo fragmentário no que toca aos valores e instituições, todos legitimados e pertencentes ao seu núcleo de vida. Não haveria hierarquia entre culturas. Não ha nada de especial nos direitos humanos, a liberdade individual e a democracia, proclamados pelo Ocidente como conquistas civilizatórias universais. O identitarismo ataca o mundo branco ocidental como a encarnação do demônio, e faz adoecer o próprio Ocidente por complexo de culpa. 

Na arena dos combates militares, o Ocidente ainda predomina no uso das armas, e por isso segue de pé na defesa do territorio ucraniano contra a bárbara invasão de Putin, assim como permanece coeso no direito de Israel de se defender contra as ofensivas do terror genocida de grupos como o Hamas. A Ucrânia quer se direcionar ao Ocidente, e por isso enfurece o ditador russo, sedento por expansionismo em sua ideologia restauracionista e anti-ocidental. Israel segue solitário como a única democracia ocidental no hostil ambiente do Oriente Médio. 

No contexto atual da geopolítica, o Ocidente se mantém de pé como força hegemônica, mas ameaçado diariamente pela fôlego econômico da China. Seu leque de influência para no sentimento tribal africano, ressentido pelo colonialismo europeu. Não consegue avançar na América Latina populista, onde a esquerda insiste em seu patológico anti-americanismo e a direita guarda antipatia reacionária contra a proposta progressista de pluralidade e inclusão que vem do liberalismo. Nas sociedades islâmicas, as virtudes ocidentais se convertem em depravação e decadência moral. Como imaginar um avanço institucional do Ocidente em um campo minado como esse?

Não existe nenhuma força teleológica a conduzir a história para o progresso. A democracia, os direitos humanos e a economia de mercado precisam ser defendidos, tratados como nosso patrimônio civilizacional. Mais da metade do mundo vive debaixo de autocracias ou regimes democráticos defeituosos. A democracia plena é rara, e cada vez menos sedutora para as mentes fora do Ocidente. A intenção universalizadora ocidental segue sendo uma iniciativa virtuosa, mesmo que muitas vezes guiada por interesses particulares. Mas, no momento, parece improvável uma convergência planetária aos valores ocidentais. 

O desfecho dos conflitos em curso no mundo podem apontar os rumos da nova ordem internacional. Ou para uma realidade multilateral com predomínio de potências como a China, ou para a confirmação da hegemonia ocidental. De certo, a convicção de que o progresso da história sofre reveses, e o declínio do Ocidente é a prova disto.

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