O homem cordial e as raízes do Brasil


HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras: 2018.


Por Adelson Vidal Alves 

O sociólogo Jessé Souza tem um livro que virou best-seller na esquerda brasileira, chamado "A elite do atraso". Lembro de ter visto petistas indo votar com ele debaixo do braço, como um evangélico carregando sua bíblia. Tamanha adoração se dá pela crítica voraz do autor à Lava-Jato, a Operação que desmascarou (nem sempre obedecendo procedimentos éticos e legais) os mecanismos de corrupção utilizados nos governos do PT. Mas o que a militância não entendeu bem é que a principal crítica de Jessé é contra a interpretação culturalista do Brasil, tratada por ele como "tolice" em outra obra sua, ou como "complexo de vira-latas". Entre os seus alvos em A elite do atraso está Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, objeto desta minha resenha. 

Escrito em 1936, este trabalho está entre as grandes reflexões históricas sobre a formação do Brasil, ao lado das obras de autores como Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Caio Prado Júnior e Darcy Ribeiro. Raízes sofre grande influência de Max Weber, evidenciado  no uso de conceitos como patrimonialismo e Estado burocrático, como bem observa o crítico literário Antonio Candido em seu belíssimo prefácio. 

Sérgio Buarque compreende a construção da brasilidade a partir da grande influência cultural vinda de nossa colonização por Portugal. "Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma", escreve. Ele ainda critica as interpretações segundo o qual teríamos destino melhor caso fôssemos colonizados por outro país europeu. De minha parte, entendo que nossa cara como país seria diferente caso fôssemos colonizados pela Inglaterra, por exemplo, de onde poderíamos absorver uma ética do trabalho, ganhar traços de impessoalidade pública e desenvolver um capitalismo mais vigoroso e próspero. Haveria vantagens significativas,  ainda que seja impossível prever o quanto poderíamos perder no nosso jeito de ser, que a muitos de nós orgulha. 

A conceituação histórica do que é o Estado em Sérgio Buarque de Holanda é crítica em relação as interpretações que veem nele a extensão e evolução dos vínculos de relação afetiva, presentes principalmente no que é a família. No capítulo 5, talvez o mais utilizado nas citações bibliográficas, ele inicia criticando essa visão estatal, argumentando que a existência do Estado é exatamente a oposição festa concepção particular e pessoal que vem do ambiente familiar. O Estado é a chegada do cidadão, do pagador de impostos, do eleitor e do candidato. 

É neste capítulo, ainda, que se desenvolve o conceito de homem cordial, um dos que mais sofre distorções nas referências a ele feitas. A cordialidade, segundo Buarque, é a contribuição brasileira para a civilização. Mas não pensem vocês que isso signifique que estaríamos oferecendo "boas maneiras" ao mundo. "Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez", diz o autor. 

O homem cordial está diretamente ligado à nossa cultura da intimidade, das relações próximas e familiares. Tal forma de ser é perceptível no trato com a coisa pública, quando percebemos as vantagens de se ter um amigo ou parente trabalhando no governo. Isso agiliza a vaga da creche, facilita o acesso aos serviços públicos, gera benefícios pessoais em um espaço onde deveria prevalecer a impessoalidade. Nossa cultura, então, se contamina com o patrimonialismo, com o privado e o público sendo confundidos sistematicamente dentro do nosso próprio jeito de ser, o "jeitinho brasileiro".

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