Um livro sobre ética e o povo ianomâmi


TIERNEY, Patrick . Trevas no Eldorado: como cientistas e jornalistas devastaram a Amazônia e violentaram a cultura ianomâmi. São Paulo: Ediouro, 2000.


Por Adelson Vidal Alves 

Ano 2000, o auditório estava lotado, cerca de 2500 pessoas. Lá estavam oito debatedores na Associação Americana de Antropologia, em San Francisco, EUA. O público começa a ficar inquieto quando o último palestrante a fazer sua fala se levanta. Era o jornalista e escritor Patrick Tierney. O motivo do alvoroço se dava em torno do novo livro de Tierney, "Trevas no Eldorado: como cientistas e jornalistas devastaram a Amazônia e violentaram a cultura ianomâmi".  Na obra, a acusação de que cientistas estariam usando de práticas anti-éticas em suas pesquisas com os Ianomâmis. 

O livro tem um alvo, o renomado antropólogo Napoleon Chagnon. Ele é autor de um estudo intitulado "O Povo feroz", onde defende que os Ianomamis seriam povos altamente violentos, que guerreavam não por recursos escassos, como defende a antropologia dominante de caráter marxista. Chagnon concluiu que as guerras se dão por mulheres e reprodução sexual. Mais: o autor relaciona o comportamento desse povo com o desenrolar evolutivo, conciliando antropologia e genética, algo não muito bem aceito entre os antropólogos. 

Para Napoleon, o estudo de tribos isoladas e sem grandes níveis de aculturação poderia revelar muito sobre a natureza humana. Seria possível desmontar o mito do índio "bom selvagem" que só aceitaria conflitos violentos na luta por terras e outros recursos em situação de escassez. Chagnon constata que os maiores guerreiros possuiam a maioria das mulheres. 

As conclusões de Chagnon já são polêmicas em si, mas as críticas foram além delas, com o livro de Tierney questionando a própria metodologia e a falta de ética não só do antropólogo mas também dos seus assistentes, como o famoso geneticista James Neel, acusado de ser simpatizante da eugenia. 

"Trevas em Eldorado" é um ataque brutal aos trabalhos de campo dos citados pesquisadores. Para Tierney, Chagnon foi responsável direto por uma epidemia de sarampo que apareceu nas tribos. Ele acusa o antropólogo de utilizar uma vacina errada no combate à moléstia, responsabilizando-o de ter sido o causador da morte de vários Ianomâmis, incluindo uma criança, que ganha destaque na abertura de um dos capítulos do livro. Para o jornalista, a vacina do tipo Edmonston B, contendo o vírus do sarampo, seria inadequada e causaria mal semelhante a doença quando injetadas nos indígenas.

O livro detona Chagnon e sua fala dura sobre a cultura ianomâmi, em narrativas onde se destaca a falta de higiene dos nativos, ou na constatação de que para estar entre estes seria necessário viver de forma igualmente selvagem. Há ainda a acusação de que o próprio Chagnon incentivou guerras entre os índios, a fim de provar sua tese sobre a natureza violenta dessa população. Para Tierney, Chagnon recebeu apoio de garimpeiros, violou regras, introduziu armas de fogo entre os Ianomâmis e comprou a parceria deles usando de artifícios moralmente condenáveis e com resultados trágicos para as tribos. 

As teses de Napoleon Chagnon são contestadas por vários antropólogos. Entretanto, as acusações de Tierney jamais foram provadas, com a AAA absolvendo Chagnon das acusações.

A leitura de "Trevas no Eldorado" nos permite revisitar uma das grandes polêmicas da antropologia moderna, entendendo que a ciência permite calorosas discussões sobre teses e até sobre os procedimentos usados por pesquisadores, humanizando o debate científico. O livro de Tierney é útil nesse sentido e faz valer sua leitura. 


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