O Brasil mestiço e inevitável


GOMES, Mércio. O Brasil inevitável: ética, mestiçagem e borrogodó. Ed.Topbooks. Rio de Janeiro: 2019.

Por Adelson Vidal Alves 

O que é o Brasil? O que é ser brasileiro? Como e por quem fomos formados? Quais são nossos vícios, pecados e virtudes? Temos ética e moral? Por que somos assim? 

A interpretação do que é a brasilidade e as raízes de sua constituição é preocupação antiga de grandes pensadores. Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre e Roberto da Matta são alguns dos que tentaram e tentam decifrar o DNA histórico do nosso ser como nação e povo. Soma-se a este time um brasileiro com obra recente significativa. Trata-se de Mércio Gomes, particularmente em seu livro O Brasil  inevitável: ética, mestiçagem e borogodó.

Márcio é um antropólogo altamente comprometido com as questões indígenas (sobre isso tem um livro fantástico, chamado  Os índios e a história que indico leitura). Ex-presidente da FUNAI, já trabalhou com Darcy Ribeiro, e orgulhosamente se assume como "rondoniano" (referência ao Marechal Candido Rondon, primeiro diretor do Serviço de Proteção ao índio e um dos idealizadores do Parque do Xingu). Como ele mesmo se descreve, é um homem de classe média que quer que esta assuma protagonismo virtuoso na condução do futuro brasileiro. 

O Brasil inevitável pretende discutir nosso jeito, nossa gente, as instituições e as estruturas sociais brasileiras. É obra fundamental na constatação e análise de nossas características; defeitos e qualidades. Avalia-se a realidade atual a partir de uma colonização que nos deixa heranças, de um capitalismo mal formado, e que assim é incapaz de derrotar definitivamente males como o patrimonialismo e tudo que ele causa em termos de prejuízo social. 

O povo e tudo que o cerca são objeto de discussão no trabalho de Mércio. Nossas deficiências passam pela ineficiência profissional, com uma cultura de produção que não produz de forma satisfatória. Falta-nos uma ética do trabalho, tão presente nos Estados Unidos, de onde importamos propostas de soluções para nossos problemas raciais. Do Norte trouxemos experiências de uma nação que prezou pela separação, pela pureza do sangue e a segregação oficial. O racismo brasileiro é terrível, mas é bem diferente do racialismo americano, e funciona a partir dos estamentos sociais dominantes frente aos negros, indigenas e mestiços. Mestiços estes entendidos como pardos, morenos, nordestinos e caboclos. Não se pode comparar a pátria das Leis Jim Crow com o alto processo de mestiçagem de nossa terra, isto é, a miscigenação de brancos e índios, índios e negros, negros e brancos etc. Na América do Norte a relação das raças se deu por segregação, aqui por assimilação. 

O autor traz questões cotidianas. Fala do nosso complexo de vira-lata (termo consagrado pelo cronista Nelson Rodrigues) que tanto nos faz ver o estrangeiro como superior, a ponto de nos preocuparmos com sua opinião sobre como vivemos. Temos uma enorme indiferença com a coisa pública. Basta olhar as ruas e calçadas, pontos de ônibus e muros de escola. O patrimônio público é vandalizado e sujo sem culpa, despreocupados que somos com os bens que são nossos, pagos com os impostos de todos. Somos ainda treinados contra o mérito e o esforço individual, debochando nas escolas dos alunos que querem o sucesso escolar. Os chamados "CDFs" são desprezados e precisam se virar para não penarem isolamento social. Os "bagunceiros'" são os que ocupam os papéis de liderança. 

Nós temos nosso jeito, e dele não abrimos mão. Se o patrão nos oferece hora extra na sexta-feira à noite, que se dane a verba a mais no fim do mês, a roda de cerveja no boteco é sagrada. Entre os ricos prevalece a arrogância do "sabe com quem está falando?". Os estamentos superiores manipulam práticas e linguagens que exibem a superioridade social do grupo.

Estes são só alguns aspectos debatidos com erudição e linguagem acessível no livro de Mércio. Muito eu ainda poderia escrever. Trata-se de um trabalho que recupera a importância do índio para o Brasil, que retrata nossa formação biológica fundada na mistura étnica e racial, e também nossa cultura mestiça, em todos os aspectos. Enfim, o autor nos apresenta um Brasil que é, e que não poderia ser de outra forma. Ou seja, um Brasil inevitável.


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