Casa-Grande & Senzala, um clássico do pensamento antirracista



FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. São Paulo, Global: 2006.

Por Adelson Vidal Alves 

"Os críticos nem sempre foram generosos com Gilberto Freyre (...) raramente deixaram de mostrar suas contradições, seu conservadorismo, o gosto da palavra sufocando o rigor científico, suas idealizações e tudo o que, contrariando seus argumentos, era simplesmente esquecido", escreveu Fernando Henrique Cardoso em apresentação da 51a edição de Casa-grande & Senzala, obra prima do sociólogo pernambucano que completa 90 anos de sua primeira edição. 

Falar de Gilberto Freyre é sempre um convite à polêmica. Para o identitarismo racial negro, ele é o propagador da democracia racial, isto é, o defesor de teoria de que o Brasil seria um país de relações cordiais entre as raças. Pesa ainda para o movimento negro seu elogio à mestiçagem, vista por ele não como degeneração, tal como tratada pelo racismo científico. O purismo identitário prefere Abdias de Nascimento, para quem a miscigenação é genocídio da população negra, visão alinhada ao racialismo das "ciências" do
 século XIX. No  entanto, vale esclarecer, o termo democracia racial não aparece uma única vez em Casa-Grande & Senzala, tendo importância conceitual marginal na obra freyriana. 

Muitos falam em uma suposta justificativa da escravidão por parte do autor, que escreveu: Teria sido mesmo um crime "escravizar o negro e levá-lo à America?", pergunta Oliveira Martins. Para alguns publicistas foi um erro enorme. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil. Aqui o que vemos é o pesquisador olhando para o passado, reconhecendo que na história as escolhas obedecem às opções colocadas pelo seu tempo. Só que o anacronismo de seus detratores é teimoso e persistente. 

Há críticas pertinentes a Freyre e sua obra. Ele olhou com simpatia o golpe civil-militar de 1964, saudando a chegada das forças armadas à política brasileira. Elogiou o colonialismo português, que teria o DNA da mestiçagem, proporcionando um melhor legado às suas colônias, comparado ao do imperialismo anglo-saxão. Com isso, recebeu honrarias da ditadura salazarista. 

Sobre a obra, há sim elementos preconceituosos, estereótipos e uma certa flexibilização metodológica (que nem de longe pode desqualificar o estudo e a pesquisa que embasam a obra freyriana). Os índios são objetos de simplificação, tratados meramente como coletores. Crítico a essa ideia, Darcy Ribeiro trouxe  realizações indígenas no campo da botânica. Os negros também foram idealizados, sendo Freyre retratado como um "negrófilo". Casa-Grande & Senzala falhou em suas mais de 500 páginas ao não dar muita atenção ao escravo de eito (os que mais sofreram com a escravidão), ainda que reconheça com destaque a contribuição do negro na formação do povo brasileiro.

Gilberto Freyre, nesta grande obra, analisa as relações sociais da escravidão a partir de uma ótica doméstica, íntima, da vida privada, algo incomum na sociologia do seu tempo. O livro é dividido em cinco grandes partes. A primeira trata das "Características gerais da colonização portuguesa", seguida por capítulos que analisam os índios e os africanos, com ênfase exagerada em aspectos da sexualidade. 

A importância de Freyre na vida intelectual brasileira é amplamente reconhecida. Monteiro Lobato disse que "O Brasil futuro não vai ser o que os velhos historiadores disseram e os que hoje ainda repetem. Vai ser o que Gilberto Freyre disser". Já Darcy Ribeiro analisou: "Creio que poderíamos passar sem qualquer de nossos ensaios e romances (...) mas não passaríamos sem Casa-Grande & Senzala".  

Casa-Grande & Senzala é um clássico do pensamento social brasileiro. Ambíguo, problemático, mas com enormes contribuições na interpretação do que é o Brasil na sua contemporaneidade. É um livro que segue ainda hoje provocando, estimulando debates, desafiando seu tempo. O elogio da mestiçagem faz da obra um clássico do pensamento antirracista. Estranho que a militância de hoje dita antirracista olhe com tanta hostilidade o trabalho de Gilbrerto Freyre.

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