Bons selvagens?


Por Adelson Vidal Alves 

O olhar do colonizador sobre a Terra dos papagaios (ou simplesmente Brasil) mesclou elementos positivos e negativos. Elogios para a natureza, críticas aos nativos. Pero Magalhães Gândavo, autor de "Tratado da terra do Brasil", falou sobre a fertilidade da terra, do clima ameno e  receptivo. Sobre os índios, eles seriam "muito belicosos", "desumanos e cruéis", além de preguiçosos. 

A observação europeia sobre os indígenas brasileiros foi tratada na maior parte das vezes a partir da concepção de que essa gente só poderia ser selvagem. O franciscano André de Thevet os viu como "maravilhosamente vingativos", destacando a prática do "canibalismo selvagem". Mesmo um Montaigne, que chegou a dizer que não via selvageria entre os nativos, admitiu serem eles selvagens quando comparados aos europeus. Hans Staden, que foi prisioneiro dos tupinambás, falou dos "medonhos costumes" destes. O próprio só não foi devorado porque se fingiu de feiticeiro. 

O grande debate moral sobre a natureza dos índios de nossa terra se deu na famosa "Controvérsia de Valladolid". Nela se confrontaram duas teses, elaboradas pelos religiosos Bartolomeu de Las Casas e Juan Guinés de Sepúlveda. O primeiro tratou os indígenas como filhos de Deus, iguais aos europeus, e que só precisavam de ordenação. Já Sepúlveda os via como raça inferior destinada à escravidão. 

Bem mais tarde, durante o império, os indígenas brasileiros caíram nas graças dos rousseaunianos do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro). O Índio foi tratado na literatura, sobretudo nas obras de José de Alencar, de uma forma que o conduzia à condição de símbolo nacional. Era necessário construir a figura do herói da nação, e ele não podia ser nem o branco colonizador e nem o negro escravizado. 

A ideia do "bom selvagem" é coisa do genebrino Jean-Jacques Rousseau, que considerava haver um estado benevolente de natureza na espécie humana, degenerada com seu ingresso na sociedade civil. Tal ideia ainda hoje povoa a mentalidade comum e até a de muitos antropólogos, quando o assunto é falar dos índios. O multiculturalismo relativiza práticas indígenas como infanticídio e até canibalismo. O Índio é visto como puro, que preserva a natureza e carrega a bondade inata de quem não se contaminou com a civilização. 

Mas a história e a antropologia mostram que a realidade é outra. Durante a colônia, os índios não foram seres ingênuos a penar a brutalidade dos invasores brancos. Os tupinambás foram aliados dos franceses, os nativos guerreavam entre si. Também não é verdade que a colonização trouxe um projeto de genocídio indígena. A maioria dos que aqui estavam morreu de doenças vindas com os colonizadores, já que a imunidade indígena não dava conta de enfrentar moléstias como sarampo e varíola. O mesmo aconteceu quando os brancos europeus entraram na África. É uma questão biológica.

No campo antropológico é notável o trabalho corajoso de Napoleon Chagnon, autor de "Nobres Selvagens". O livro é um relato de sua experiência entre os Ianomamis amazônicos. Chagnon observou e se surpreendeu com o nível de violência entre o grupo, no qual muitos se matavam por sexo. Morriam e assassinavam na luta pela posse de uma mulher. Caía o mito de que a guerra entre os indígenas só se dava por bens escassos. Narra o antropólogo: "já no meu primeiro dia em campo vi muitos com a cabeça ensanguentada pelos golpes de tacape na incursão para recuperar as mulheres- e agora eles trocavam ameaças de morte".

Já sabemos que entre algumas índias há a prática de passar sangue nos seios na hora de amamentar, a fim de acostumar os bebês com o sangue do guerreiro inimigo. Há outras práticas tenebrosas entre os índios que anulam a tese do bom selvagem. Mas quem ousa falar disso acaba sendo taxado com os piores adjetivos. O próprio Chagnon teve que responder a acusação de envenenar Ianomamis, mas acabou absolvido pela Associação Americana de Antropologia. 

Hoje, o STF brasileiro discute o chamado Marco temporal, que propõe limitar no tempo a demarcação de terras indígenas. Os opositores desta tese querem perpetuar a "raça indigena", fazendo dos índios de hoje descendentes diretos dos nativos do passado, sendo assim, herdeiros da  terra. Por trás da militância indigenista vem sempre a narrativa da pureza natural dos índios a influenciar a opinião pública. Apesar das evidências contrárias, o mito do bom selvagem segue vivo.

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