Freyre e Smith são exemplos de autores vítimas das rotulações

 


Por Adelson Vidal Alves 

"Há um discurso ainda corrente na academia de que o racismo na obra do pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) seria uma espécie de mal-entendido sociológico, embora o autor de "Casa-Grande & Senzala" tenha dado os fundamentos teóricos para aquilo que convencionou-se chamar de "democracia racial", escreveu o sociólogo Wagner Miquéias Damasceno (FSP, 26/12/2022). O artigo termina da seguinte forma: "A verdade é que as críticas a Freyre (...) são ainda pequenas quando comparadas ao alcance de suas ideias. De fato, ainda vigora uma espécie de pacto de silêncio sobre o conteúdo de suas obras."

A acusação contra a Freyre é de que o sociólogo pernambucano teria criado e desenvolvido o conceito de democracia racial, ou seja, uma suposta realidade de convivência cordial entre as raças no Brasil, reduzindo a gravidade do racismo e a violência da escravidão na América portuguesa. Intelectuais como a antropóloga Lilia Schwarcz trataram Freyre como aquele que "construiu o mito", o mito da democracia racial. E o sociólogo Carlos Hesenbalg o atacou como sendo o responsável pela criação "da mais formidável arma ideológica contra os ativistas antirracistas". 

Gilberto Freyre celebrou a mestiçagem brasileira enquanto muitos viam na mistura das raças um golpe fatal no processo civilizatório. Sua obra tem conteúdo antirracista, mas o que prevaleceu foi sua suposta pregação de um Brasil sem ódio racial. O termo democracia racial sequer é citado em sua principal obra, "Casa Grande e senzala", e teve marginal participação na composição conceitual do pensamento freyriano.  As palavras aparecem pela primeira vez juntas em 1949 e depois em 1954, onde ele se defendia de acusações afirmando que seu otimismo racial em relação ao Brasil se dava em comparação com outros países. Em um anuário britânico o termo democracia racial volta a aparecer, mas não como a descrição de uma realidade, mas como ideal. Em 1980 ele dá uma entrevista e esclarece:  "Não há pura democracia no Brasil, nem racial, nem social e nem política". Inúteis palavras, o rótulo já estava devidamente colocado. 

Outro autor a sofrer com os rótulos foi o filósofo escocês Adam Smith (1723-1790). Por ocasião da crise econômica de 2008, seu nome apareceu várias vezes como o responsável pelas ideias que provocaram os problemas econômicos que ali surgiam. Ele teria sido o responsável pelo pensamento de que os mercados se autorregulam através de uma "mão invisível". Seus críticos o atacaram por conta desse termo, implorando por mais interferência estatal.

As palavras "mão invisível" apareceram pela primeira vez com Smith na sua história da astronomia, onde ele fala das sociedades politeístas que viam nos acontecimentos naturais interferência divina. Depois voltam a aparecer na "Teoria dos sentimentos morais", com a narrativa de empresários egoístas que faziam a sociedade progredir sem ter qualquer intenção. Por fim, aparecem em "A Riqueza das nacoes", onde ele critica o monopólio e ataca restrições às importações. Smith não era um apologista dogmático e intransigente da total desregulamentação dos mercados. Por várias vezes defendeu intervenções do governo, mais impostos para os ricos e assistência aos pobres. Mas o rótulo que ficou foi o de um defensor insensível do capitalismo, que acreditava religiosamente na mão invisível do mercado, termo a quem recorreu por pouquíssimas vezes. 

Freyre e Smith foram traídos em seus conceitos, com distorções ou exageros. São parte de um debate público onde muitas vezes o importante é demonizar o adversário, pouco importando a verdade.





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