A maior revolução social da nossa história, mas que deixou dívidas


Por Adelson Vidal Alves 

Das 12 milhões de almas que atravessaram o Atlântico em navios tumbeiros (assim chamados porque se assemelhavam a verdadeiras tumbas), 4,9 milhões tiveram como destino o Brasil. Na terrível travessia, com a incerteza de para onde iriam, muitos dos negros e negras sequestrados de sua terra temiam em suas mentes o canibalismo dos novos povos que supostamente encontrariam. Sem alimentação decente e em lugares insalubres, contraíam doenças e eram esmagados pela lotação das embarcações negreiras. Mortos, tinham seus corpos atirados ao mar.

Chegando à América Portuguesa, longe de seu povo, dos seus costumes e da sua cultura, conheceriam o trabalho compulsório e o cotidiano do castigo. As negociações para o comércio escravocrata envolviam os europeus, traficantes e mesmo os próprios reinos africanos, alguns destes alcançando prosperidade e centralização politica à custa da caça e da captura de sua própria gente.  

No Brasil, a escravidão não se fundou prioritariamente em razões raciais, mas na dinâmica da economia mercantil colonial. Nada em nosso estatuto jurídico impedia um negro de ter escravos, e mesmo escravos tinham escravos. Sinhás pretas acumularam riqueza com a posse de escravizados, conforme demonstra os estudos recolhidos pelo antropólogo Antonio Risério. O estatuto da posse, que convertia pessoas em coisas, dava o tom das relações de trabalho predominantes na colônia e no período imperial.

Longe de ser amena, a escravidão no Brasil foi tirana, violenta, cruel e perversa. Famílias eram separadas (ainda que estudos como o de Manolo Florentino mostrem realidades até então desconhecidas sobre a questão das famílias de escravos), os cativos eram amontoados em condições desumanas e proibidos de viverem sua religião. No mundo do trabalho compulsório deste período havia certa desigualdade, era possível perceber diferenças entre os escravos de eito e outros escravos. A igualdade só se fazia presente na privação da liberdade.

Nas fazendas a vida era dura, mesmo crianças, os “moleques”, com seus corpinhos frágeis, desde cedo eram expostas ao trabalho pesado, enquanto serviam de brinquedinho aos filhos dos brancos. Escravas eram obrigadas a abandonar seus filhos para atender a senhora da Casa Grande, enquanto seus queridos meninos e meninas eram doados ou criados por outras pessoas. Mulheres grávidas sofriam castigos físicos, e até mesmo máscaras faciais eram usadas para frear a possibilidade do suicídio em situações onde homens e mulheres comiam areia até morrer. Procurar a morte era um dos atos de resistência à escravidão. 

A partir de 1880 o Brasil viu a aceleração do processo de abolição gradual no país. Foram aprovadas leis como a Lei do Ventre Livre (1871), Lei do Sexagenário (1885) e finalmente a Lei Áurea (1888), que pôs fim definitivo à escravidão em todo o território nacional (registramos aqui que no Ceará o cativeiro já era proibido desde 1884). As razões da abolição combinam motivações políticas, econômicas e humanitárias.

O movimento abolicionista cresceu e ganhou unidade com a criação da Confederação Abolicionista, em 1883, presidida por João Clapp. Ainda assim, os abolicionistas não tinham consenso quanto ao verdadeiro caminho a ser trilhado até a vitória final. Joaquim Nabuco em sua grande obra “O Abolicionismo”, defendeu que o fim do trabalho  escravo deveria acontecer por dentro da luta parlamentar. Escreveu ele: “É, assim, no parlamento e não em fazendas ou Quilombos do interior, nem nas ruas e praças da cidade, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade”. Há quem tenha apostado nos tribunais, caso do advogado Luiz Gama, que se utilizando de uma lei de 1831 conseguiu a alforria de mais de 1000 escravos. Por outro lado, havia os caifases, grupo organizado em São Paulo por Antonio Bento de Souza e Castro, que desde 1882 apoiava rebeliões e fugas de escravos. 

O debate sobre a escravidão no Brasil é um dos mais intensos dentro da historiografia. Em pesquisas como as de Ciro Flamarion Cardoso, percebemos que o trabalho da colônia ia além da plantation (monocultura, latifúndio e trabalho escravo) e havia a hipótese de que alguns grupos de escravos teriam liberdade para plantar em terras perto de suas cabanas, produzindo para si e para o mercado interno. Essa tese recebeu o nome de “brecha camponesa”. 

Fato é que a escravidão acabou em 1888, com a citada Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, então regente do trono brasileiro. Isabel é uma figura controversa. Para alguns é uma heroína nacional, para outros, uma simples oportunista pressionada pelos fatos de seu tempo. A historiadora Mary Del Priore, em seu livro “O castelo de papel”, narra uma princesa pouco interessada pelas lutas abolicionistas, e que nutria, até certo modo, sentimentos de racismo. No entanto, há documentos que testemunham a atividade da princesa na compra de alforrias e na proteção do Qulombo do Leblon.

O 13 de maio de 1888 significou o fim do cativeiro, e foi comemorado com festa pelos negros libertos. Contudo, a data se resumiu a dois artigos, o que libertava os negros e negras do país, e o que revogava dispositivos contrários. Nenhum reparo pelos séculos de sofrimento foi feito, nenhuma política de inserção dos ex-escravos no novo mundo do trabalho que nascia. O fim da escravidão foi fruto de uma poderosa revolução social, a maior da nossa história. No entanto, de forma incompleta, legou injustiças. 

A escravidão forma ainda hoje o imaginário racista que povoa a mentalidade nacional hegemônica. É parte tristemente integrante da nossa história, uma mancha do nosso passado ainda a assombrar o presente. Vencer seu legado segue sendo um grande desafio. 


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