O que fez dos Estados Unidos, os Estados Unidos

 


Por Adelson Vidal Alves 

A América do Norte era uma "selvageria anárquica", nas palavras do historiador escocês Nial Ferguson. Neste mesmo momento, o território da América espanhola prosperava em metais preciosos. Por que a primeira América se tornou a maior potência econômica do mundo enquanto a segunda se fragmentou em pequenas repúblicas, algumas delas bastante pobres? 

A revolução industrial na Inglaterra produziu um êxodo rural responsável por problemas sociais no meio urbano. A América, então, tornou-se uma grande opção para muita gente. Lá prevaleceu a chamada "servidão de contrato", com os colonos trabalhando de graça por alguns anos a quem lhes financiava a viagem, para logo depois poderem construir suas novas vidas. Alem disso, grupos religiosos como os quakers encontraram no novo mundo um lugar de fuga para as perseguições religiosas que sofriam. Era esse o caldo social que povoou a América inglesa. Talvez venha daqui a compreensão do sucesso americano. 

O sociólogo Max Weber em seu clássico "A ética protestante e o espírito do capitalismo" entendeu que o sistema capitalista se assentou em estruturas religiosas da mentalidade calvinista. Os protestantes desse grupo ligam o triunfo financeiro à predestinação divina. Ao contrário dos católicos que condenavam duramente a usura e viam maldição no trabalho, as seitas protestantes do Norte valorizavam a dedicação laboral. Trabalhar nunca foi vergonha para esse povo. 

Não faltam pensadores brasileiros de prestígio para justificar a diferença entre a colonização inglesa e ibérica. Falo de gente como Sérgio Buarque de Holanda, de "Raízes do Brasil" e Raimundo Faoro de "Os donos do poder". No Brasil, foi herdado um Estado patrimonial pesado, enquanto nos Estados Unidos prevaleceu uma dinâmica própria do capitalismo liberal empreendedor e de valorização do trabalho. A futura superpotência, assim, é fruto de uma cultura enraizada na ética das seitas protestantes da colonização .

O nascimento dos EUA não se dá pela ruptura das treze colônias com a cultura da metrópole. Ao contrário, como bem explicou Edmund Burke em seu formidável "Reflexões sobre a revolução na França", a independência americana se forma na luta pelo resgate do espírito britânico de valorização da liberdade. Muitos colonos não queriam o desligamento com a Inglaterra, e só aderiram à revolução quando a guerra estava em curso e era definitiva. A vitória das colônias marca a fundação do país que iria substituir a hegemonia inglesa. 

Feita a emancipação política, sob grande influência de um pensador britânico, John Locke, o corpo constitucional estabeceleu direitos naturais:  vida, liberdade e busca por felicidade. Os Estados Unidos da América fincavam as bases de seu funcionamento, seu olhar sobre si e sobre o mundo. Desenvolveram-se, mas nem sempre de forma virtuosa. Pesa sobre a nação americana o extermínio voluntário e involuntário dos indígenas, a escravidão e a expansão violenta. A futura potência que agora nascia avançava sobre negros e indíos, e carregou consigo uma ideologia messiânica, chamada "destino manifesto". Usando as vestes do seu protestantismo fundador, os Estados Unidos acreditaram em uma missão divina para com o mundo. Um país escolhido por Deus para proteger toda a humanidade.

A vocação imperialista americana estabelece-se aqui, debaixo do manto ideológico/religioso então construído. Embalado neste olhar, os norte-americanos construíram uma espécie de império informal, com o inglês, o dólar e o estilo de vida americano (American way of life)   a se estabelecer como elementos universais. Os EUA se tornam uma superpotência econômica e militar, constituindo-se como a polícia do mundo, a grande nação hegemônica. 

Mas o poder americano está hoje ameaçado. Na esfera econômica ele ainda prevalece, porém com a China no seu encalço. Seu poderio bélico continua incomparável, no entanto é notada a fragilidade de seus aliados diante do apetite das ditaduras russa e chinesa. As trapalhadas na política externa, como a invasão do Iraque e a promoção de ditaduras na América Latina, fizeram dos EUA uma potência odiada, com uma parte do planeta a rejeitar a ordem global que gira em sua volta. 

Estamos debatendo a queda do império do século XX. Quando essa queda vai acontecer? Não dá pra saber. O fato é que ninguém pode ignorar o papel desse povo na construção de uma série de valores e instituições benéficas para todos. Muito mal foi feito também, é verdade, muitos prejuízos causados em nome de uma concepção de mundo. A principal potência planetária acertou e errou, fez bem e fez mal. Agiu a partir do que são, pensam e acreditam.

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