Livres do cancelamento

 


Por Adelson Vidal Alves 

Nos embalos do Black Lives Matter, foi lançada a campanha "Rhodes deve cair". A ideia era remover a estátua do imperialista Cecil Rhodes que adorna a fachada do Oriel College de Oxford. A resposta dada ao movimento foi negativa, mas o argumento nada tinha a ver com proteção do monumento, e sim de que a empreitada envolveria custos altos. Rhode deixou em testamento uma bolsa de estudos na universidade, colocando como condição que tal concessão fosse feita sem preconceito de cor e opinião. Depois de cinco anos de sua morte foi concedida a primeira bolsa a um aluno negro. Isso não foi levado em conta pelos canceladores.

Em 2020, em Bristol, sul da Inglaterra, um grupo de manifestantes derrubou  e jogou no rio a estátua de Edward Colston, comerciante, filantropo e traficante de escravos. O acontecimento se inseria em uma série de manifestações pelo mundo contra a morte do negro George Floyd nos Estados Unidos, assassinado por um policial branco. 

No Brasil, monumentos também ja foram alvos de protestos. Em Santo Amaro, Zona Sul de São Paulo, a estátua do bandeirante Borba Gato foi incendiada por vândalos de um grupo chamado  "Revolução periférica". Para os criminosos, o ato se justificava pelo fato de Borba Gato ter sido um escravagista que oprimiu negros e índios. Um outro grupo chegou a colocar crânios ao lado da estátua no intuito de "ressignificar a história". 

Ainda no esteio do movimento BLM, a Universidade de Edimburgo decidiu renomear a torre David Hume, que passou a se chamar "40 George Square.” A decisão foi tomada depois de um abaixo assinado ligar a figura do grande pensador iluminista ao racismo, por conta de suas declarações. De fato Hume escreveu "estou propenso a suspeitar que os negros (....) são naturalmente inferiores aos brancos", tipo de ideia comum na época. Mas tal declaração é uma afirmação isolada em meio à sua ampla e grandiosa obra. 

Os atos de cancelamento no espaço e no debate público visam higienizar praças, museus e universidades de algum passado ou presente indesejável . Só que quando o assunto é "queimar" figuras políticas, históricas ou intelectuais, as ações são bastante seletivas.

Na cidade de Trier, na Alemanha, há uma estátua de bronze do filósofo Karl Marx, presente do regime totalitário chinês. Não me consta que o monumento dedicado ao pensador comunista tenha sido vandalizado por alguma patrulha moral. Estranho, pois declarações polêmicas de Marx não faltam.  Sobre mexicanos e a briga pelo território da Califórnia, afirmou: "É um golpe de azar que a magnífica Califórnia tenha sido tomada [pelos americanos] dos preguiçosos mexicanos que não sabiam o que fazer com isso?". É dele também a declaração: "Sem a escravidão, os Estados Unidos, o mais avançado dos países, teria se transformado num país patriarcal". Além disso, Karl Marx foi simpático à dominação britânica na Índia e foi profundamente racista com os negros.

E quanto a Che Guevara? O revolucionário argentino que estampa camisas da juventude além de assassino era homofóbico. Seu racismo tambem foi expresso. Ele escreveu em 1952 que " o negro indolente e sonhador gasta seu dinheirinho em qualquer frivolidade ou diversão". Quantas estátuas de Guevara foram vandalizadas? 

O movimento identitário tem ídolos, e talvez o maior deles seja o filósofo francês Michel Foucault. Engraçado que não vi nenhum ativista pela causa das minorias sequer debater as graves acusações de estupro de criancas que pesam sobre ele. Guy Sorman, colega intelectual de Foucault, em entrevista à revista Sunday Times, afirmou que "crianças pequenas corriam atrás do Foucault dizendo ‘e eu? Me pegue, me pegue". Sim, o autor de Vigiar e punir teria feito sexo com crianças árabes enquanto morava na Tunísia. Imagine se tais palavras fossem ditas contra um pensador liberal ou conservador?

É fato que homens pertencem ao seu tempo, e que mesmo os atos e declarações mais condenáveis merecem exames rigorosos e contextualizações devidas. A patrulha do cancelamento age não só de forma autoritária, mas também desonesta. É aqui que mora a seletividade de seu ativismo, protegendo os seus e atacando os inimigos. Em outras palavras, há quem esteja livre do cancelamento.

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