Negras e mulatas obtiveram ascensão social no Brasil escravista


Por Adelson Vidal Alves 

Chica da Silva é uma personagem conhecida no Brasil. Mulata escravizada que se relacionou com um contratador de diamantes, tendo com ele treze filhos. Foi alforriada, ficou rica, teve escravos e tratamento de respeito na região onde morava. Sua história não é exceção no Brasil escravista. Muitas negras e mestiças não só conseguiram liberdade como acumularam poder e riqueza, é o que conta As sinhás pretas da Bahia: suas escravas, suas joias, do antropólogo Antonio Risério. 

O livro causou polêmica quando lançado, principalmente a partir de uma resenha assinada pelo então colunista da Folha de São Paulo, Leandro Narloch. Os críticos esqueceram a verdadeira autoria da obra e centraram fogo no resenhista. Thiago Amparo, um dos principais nomes da patrulha identitária na imprensa, acusou o texto de racista e responsabilizou o jornal, dizendo "eu me reservo a dignidade derradeira de dizer com todas as letras que a coluna de Leandro Narloch é racista; que publicá-la faz do jornal conivente". Mais tarde, Risério seria lembrado, mas por conta de outro texto, que alcançou reação semelhante. Agindo em bando, censores identitários pediram a cabeça de todos que ousassem ferir a cartilha negrista. 

O ensaio de Risério não é um punhado de especulações sem base, ele está ancorado em uma historiografia que reúne nomes como da nigeriana Elizabeth Isichei, de Sheilla de Castro Faria, Eduardo França Paiva, Alberto Costa e Silva e de Manolo Florentino, um dos maiores historiadores em matéria de história da escravidão e que assina a apresentação do livro. 

É curioso como a história dessas mulheres vitoriosas em plena sociedade escravista incomoda a militância do movimento negro. Na concepção identitarista a escravidão na América Portuguesa se resumiu a brancos ricos malvados maltratando negros pobres ingênuos.  Esquecem-se de uma diversificada classe de trabalhadores livres pobres, e omitem que o tráfico Atlântico contou com participação mulata e negra no transporte e aprisionamento de pretos escravizados. Não contam que o levante negro-muçulmamo dos malês pretendia escravizar mulatos e que reinos africanos obtiveram centralização política em disputas violentas pela venda de almas que embarcariam nos tenebrosos navios tumbeiros.  

As sinhás pretas, objeto de estudo do livro de Risério, constituíram uma categoria de pessoas que obtiveram mobilidade social mesmo diante de uma sociedade amplamente desigual e escravista. Elas acumularam riquezas, promoveram inveja em mulheres brancas falidas, esbanjaram joias exclusivas, obtiveram mudanças para melhor no tratamento que recebiam e compraram muitos escravos. 

O leitor não se apresse em tratá-las como traidoras. Elas apenas responderam à provocação da cultura dominante da época, que oferecia status social privilegiado a quem possuía cativos. Todo mundo queria ter escravos, e quando um escravizado conquistava sua liberdade também se empenhava para comprar os seus. Em Palmares havia negros cativos. Era parte da engrenagem do funcionamento social do Brasil escravista oferecer essa oportunidade "democrática" para que todos pudessem possuir escravos, mesmo os negros, e eles tiveram. 

As Sinhás Pretas conseguiram seu patrimônio de forma empreendedora, ainda que parte das joias ostentadas por essas senhoras tenha vindo de mimos que recebiam. O capitalismo mercantil da América Portuguesa não firmou cláusula contra ascensão social de negros, apesar das estruturas operarem uma realidade de desigualdades. Fora da ficção identitarista, o cenário colonial e imperial brasileiro até a Lei Áurea foi bem complexo nas suas formas de relação e trabalho. As mulatas e negras que alcançaram crescimento social são o rosto do sucesso meritocrático desse período. Escondê-las só se justifica como forma de manter viva a narrativa simplista do vitimismo racial. Tais mulheres deveriam ser exemplo para o movimento negro, pelo menos nisso Narloch acertou em sua resenha. 






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