Identitários falsificam a história nas salas de aula



Por Adelson Vidal Alves 

Era novembro e os professores se mobilizavam para a "Semana da Consciência Negra". Cada docente deveria trabalhar um tema em sua disciplina. Em artes: a beleza das danças africanas. Em língua portuguesa: a variedade dos dialetos africanos. Em geografia: a constituição do território africano. Também era necessário mostrar as personalidades negras que obtiveram destaque e sucesso, a fim de "resgatar a autoestima das crianças e dos adolescentes negros e negras". Os professores  trabalhavam de forma dedicada a fim de celebrar o orgulho racial negro. 

Fui fazer minha parte. Abordei em minhas aulas a origem da data comemorativa, e resolvi problematizar o quilombo que dera origem à comemoração do 20 de novembro. É que meus alunos tinham aprendido que Palmares foi uma sociedade igualitária, democrática, sem hierarquia e que combatia o sistema escravista. Um mito produzido por identitaristas catequistas que falsificam a história por puro interesse ideológico. 

"É uma mistificação dizer que havia igualdade em Palmares", afirma o historiador Ronaldo Vainfas. O mais famoso quilombo brasileiro tinha escravos "sequestrados pelos guerrilheiros palmarinos", eles trabalhavam "nas plantações do grande quilombo", como nos lembra o antrópologo Antonio Risério. O mítico Palmares lutou pela liberdade dos negros, o Palmares histórico negociava com o mundo escravista e mantinha cativos. Vale lembrar, aliás, que a escravidão é parte da história africana. Antes da Europa escravizar em suas colônias, a África já tinha seus escravos. 

O abastecimento do indecente tráfico Atlântico de almas era feito com associação de reinos africanos, que moldaram seu poder político na captura e venda de humanos como cativos. O historiador marxista Jacob Gorender, em "O escravismo colonial", escreveu: "capturar prisioneiros para o tráfico tornou-se atividade prioritária de tribos primitivas de remotas regiões interioranas à de sólidos Estados litorâneos, como o de Daomé". A aquisição de negros pelos próprios negros se dava com perversidade semelhante ao tratamento dado pelos brancos em suas colônias. Pessoas eram caçadas, aprisionadas e levadas com seus pescoços amarrados uma nas outras. Gente preta torturando gente preta. 

A ideia de que há uma essência cruel de pele branca e bondade natural e oprimida dos negros é uma grande distorção produzida nas entrelinhas de livros didáticos e ensinada em sala de aula por professores identitaristas. Para essa militância é difícil reconhecer que o Ocidente branco não só não inventou o horror escravista como foi o primeiro a acabar com ele. Enquanto a escravidão era abolida na Inglaterra, ela seguia em território africano. 

A narrativa do branco opressor também ocupa a paisagem nativa da história brasileira. Nossas elites roussaunianas do IHGB chegaram a tentar construir o mito do bom selvagem como símbolo nacional. Índios até hoje são tratados por alguns como seres de benevolência essencial, vivendo pacificamente e harmoniosamente nas belas e preservadas matas desse país. É tão falso quanto o tratamento de indolente dado a eles durante muito tempo, e incrivelmente reproduzido ainda nos dias de hoje. 

Há professores e livros de história que tratam a presença portuguesa no Brasil como uma operação genocida contra os que aqui estavam. Houve, é verdade, mortes em guerras e no contato de índios com doenças vindas da Europa. Uma matança arquitetada para extermínio de uma etnia, que é a conceituação correta do termo genocídio, no entanto, não existiu. Infantilizar os indígenas como seres de pura bondade é ignorar que os tupinaés quase foram dizimados pelos tupinambás, que ainda se apropriaram de suas terras. Os mesmos tupinambás se aliaram aos franceses contra os portugueses, em arquiteturas políticas que nada lembram a angelicalidade contada por alguns. 

Em 2015, uma proposta de reforma curricular do ensino médio propunha a abolição da Europa nas aulas de história. Com a desculpa de combater o eurocentrismo, só seria ensinado história do Brasil, mundo ameríndio e África. A Europa, vista como abrigo de branco malvados, deveria desaparecer dos livros didáticos e dos programas escolares. A história se curvaria à vontade ideológica de militantes doutrinadores. 

Felizmente tal proposta foi rechaçada, e a iniciativa de doutrinação identitária nas escolas acabou sendo adiada, pelo menos oficialmente. Professores que distorcem a história para fins ideológicos continuam e continuarão existindo.

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