Orgulho de ser mestiço

 

 


Por Adelson Vidal Alves 

Em 14 de agosto de 1862, Abraham Lincoln convocou um grupo de negros americanos para discutir a questão da convivência racial. O presidente então disse: "Vós e nós somos raças diferentes. Existe entre ambas uma diferença maior do que aquela que separa quaisquer outras duas raças (...) muitos de vós sofrem enormemente ao viver entre nós, ao passo que os nossos sofrem com vossa presença". Thomas Jefferson, outro presidente dos EUA, em "Notas sobre o estado da Virgínia" defendeu que os negros americanos fossem educados no país e logo depois enviados para uma terra separada para eles. 

Não foram apenas governantes brancos que pensaram a separação racial como a melhor solução para as questões de vivência entre as raças. Marcus Garvey, um dos principais nomes do panafricanismo, entendia que "É uma depravada e perigosa doutrina da igualdade social clamar, como fazem certos líderes colored, pelo convívio entre negros e brancos, o que destruiria a pureza racial de ambos". Garvey admirava Hitler, e chegou a se reunir com Edward Young Clarke, um dos líderes da organização racista Ku Klux Klan. Supremacistas brancos e Garvey compartilhavam a ideia de que brancos e negros não poderiam conviver juntos. 

O separatismo racial, de Garvey ou dos presidentes americanos, não ficou apenas no campo teórico. O panafricanista fundou uma associação com o intuito de reunir recursos para enviar os negros "de volta" para a África. E o Congresso dos EUA tentou viabilizar empreitadas semelhantes. No entanto, a experiência mais próxima do ideal separatista foi a Libéria. Em dezembro de 1816 homens como o senador Henry Clay e o advogado Daniel Webster tomaram a iniciativa da fundação da Sociedade Americana de Colonização. O financiamento do "Projeto Libéria" ganhou apoio de escravistas, e se concretizou com a criação do país em 1826, sendo a capital Monróvia uma homenagem ao presidente americano James Monroe, apoiador da ideia e proprietário de escravos. Na primeira Constituição da Libéria independente se lia "apenas pessoas de cor devem ser admitidas como cidadãs dessa República".

O ideal da pureza racial alcançou negros e brancos na história, produzindo supremacistas de ambos os lados. Hitler produziu a experiência mais tenebrosa do ideal de superioridade racial, legando a morte de milhões de pessoas tidas como raças inferiores. Nada se compara ao nazismo, mas é necessário lembrar que os hutus chamavam os tutsis de "baratas" em uma clara demonstração de racismo no terrível genocídio de Ruanda. O ódio oriundo de concepções raciais atravessa variados grupos, sejam eles asiáticos, negros ou brancos. Vamos lembrar de Yusra Khogali, ativista mulata, co-fundadora da organização canadense Black Lives Matter – Toronto, que certa vez disse ter que se segurar para não sair assassinando brancos. Em sua rede social ela escreveu:

"A branquitude não é humanidade; de fato, a pele branca é sub-humana (...) Todos os fenótipos existem dentro da família preta e os brancos são principalmente um defeito genético da pretitude. (...) Os brancos principalmente são defeitos genéticos recessivos. Isso é fato (...) Os pretos principalmente simplesmente através de seus genes dominantes podem literalmente destruir a raça branca"

O racismo de Khogali e sua posição supremacista não encontram apoio na ciência moderna, que chegou ao consenso da inexistência de raças na biologia humana. A cor da pele é tão somente fruto da produção de melanina, com representação genética mínima na totalidade da nossa natureza. Deveria ser o suficiente para encerrarmos a discussão sobre a construção de guetos étnicos e raciais, entendendo que o ideal de pureza é tolo, sendo a história testemunha de que o que prevaleceu no tempo foi a mistura, a mestiçagem, tão combatida por alguns. 

Kabengele Munanga em "Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional x identidade negra" reconhece que a miscigenação é parte dominante no percurso existencial de nossa espécie. Mas, em se tratando do nosso país, ele considera a mestiçagem como ideologia, que se assenta sobre a ideia de branqueamento da população. O mestiço, segundo Munanga, não consegue compreender sua condição de oprimido, já que se insere na ideia histórica de que a mistura pode produzir mobilidade social a partir do branqueamento. A mestiçagem, para o autor, impede laços de solidariedade entre mestiços e os negros propriamente ditos. 

Antes de Munanga, o ex-integralista e racialista brasileiro Abdias Nascimento já denunciava a miscigenação como projeto de extermínio do negro. Abdias enxergou o mulato como sendo a parte opressora do sistema escravista, os capitães do mato, se esquecendo que muitos mestiços lideraram rebeliões importantes nos nossos tempos de colônia. O autor de "O genocídio do negro brasileiro" casou-se com uma não-negra, mas mesmo assim enxergou a mistura das raças como um plano de extermínio dos pretos. Hoje, a oposição à mistura racial se encontra em faixas na Avenida Paulista estendidas pelo movimento negro, até a classificação depreciativa de "palmiteiros" ou "palmiteiras" de homens e mulheres de cor preta que se relacionam com pessoas de pele branca. 

No entanto, no Brasil, a mestiçagem ganhou o espírito dos brasileiros, com grande parte da população se declarando parda, a declaração de quem racialmente se sente uma "raça intermediária". Nem mesmo o truque tosco e pardicida do IBGE de construir estatísticas bi-raciais no nosso país conseguiu erguer muros puritanos por aqui. Pelo contrário, a miscigenação segue firme nos casamentos interraciais que aumentam em todo país, expressando nosso orgulho mestiço. 

O racismo científico do século XIX interpretou o miscigenado como um degenerado. Muita gente viu o Brasil como sendo uma nação fadada ao fracasso devido a sua mistura. O projeto de branqueamento defendido por gente como Oliveira Viana e Silvio Romero se instalou em parte das nossas elites do passado, crentes em um futuro branco e próspero da pátria brasileira. Mas a mestiçagem não produziu e nem poderia produzir uma nação branca, ela produziu um povo com identidade nacional própria, pessoas distanciadas de supostos passados africanos tribais, indígenas ou europeu, um povo brasileiro, como diria Darcy Ribeiro.

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